Baseada em uma história real, a minissérie da Netflix lançada em 2019 é uma agradável e impactante surpresa que passou meio despercebida pelo público brasileiro. Por tratar de um assunto extremamente delicado, talvez não tenha recebido a atenção e divulgação merecidas. Mas digo sem medo que esta é uma das produções mais bem feitas da plataforma de streaming vermelhinha.
Inacreditável acompanha uma dupla narrativa, onde uma jovem chamada Marie Adler (Kaitlyn Dever, de Fora de Série) relatou uma denúncia de estupro, o qual ocorreu de madrugada em seu próprio apartamento. Após uma breve “investigação”, a dubiedade dos relatos de Marie põe sua denúncia em estado de alerta, fazendo-a ser desacreditada e acusada de falsa denúncia de estupro.
Em outro estado dos EUA, duas investigadoras começam a investigar um possível estuprador em série. Enquanto acompanhamos o desenrolar da história de Marie (era mentira ou não?), acompanhamos também o trabalho das detetives Karen Duvall (Merrit Wever, de Birdman e Sinais) e Grace Rasmussen (Toni Collette, sim, a de Hereditário e O Sexto Sentido), tentando descobrir a identidade do homem que, até agora, possui o modus operandi mais inteligente que já viram para cometer estupros. O detalhe é que os dois momentos da narrativa possuem 3 anos de diferença.
A história da minissérie, como eu disse, é baseada em uma assustadora história real. Desde o jeito de agir, às peças da investigação para descobrir onde está um monstro escondido dentro de um país inteiro. Você pode conferir até o nível de veracidade dos detalhes aqui no site da VEJA e do Jornal Correio. Porém, recomendo a leitura somente depois de assistir à produção.
A caracterização ficou perfeita
A coisa mais surpreendente do show de apenas 8 episódios de mais ou menos 50 minutos é sua capacidade de reinventar um gênero já batido. Quer dizer, todo mundo já viu filmes como Seven e Zodíaco. Investigações policiais já se tornaram um clichê cansativo e blasé. Porém, a excelente direção de Lisa Cholodenko conduz uma investigação empolgante, cheia de diálogos sutis e soluções criativas para superar becos sem saída, além de invocar todo o potencial das 3 atrizes principais.
E por falar nelas, que trabalho impecável! Toni Collette já nem me surpreende desde O Sexto Sentido: sua atuação está assustadoramente real. Percebe-se quase uma raiva genuína de toda a situação criminosa em si nos olhares e em seu jeito raivoso de falar. Já Merrit Wever dá vida a uma personagem menos explosiva e mais controlada, que fala mais pelo olhar do que por qualquer outra coisa. Juntas, formam uma parceria engraçada e única, digna de se assistir por horas e horas.
Porém, em minha humilde e não reconhecida opinião, as palmas deveriam ir para Kaitlyn Dever. A garota veio de um monte de produções que não lhe forneceram o devido destaque e entrega um trabalho digno de prêmio. Seus olhares confusos, amedrontados e dolorosos despertaram em mim a vontade de entrar na TV e abraçar aquela criança. Fora que ela consegue se destacar entre duas atrizes já consolidadas na indústria. Isso definitivamente não é uma tarefa fácil.
Outro ponto extremamente positivo são os diálogos entre as duas detetives. É a parte mais carismática da minissérie. Ver aquelas longas conversas onde uma se abre com a outro de um modo genuinamente natural é quase um deleite pra quem consegue reconhecer um diálogo forçado em produções bobinhas e simplórias.
Não parecem duas atrizes atuando: parecem duas amigas de longa data conversando sobre tudo o que se pode imaginar e revelando mais de si mesmas nas entrelinhas do que qualquer fala estúpida e direta poderia fazer. Dá pra passar horas revendo a cena das duas conversando no carro de Grace.
Já deu pra notar que a minissérie fala bastante pelos olhos, né?!
A investigação, quase um 4º personagem físico, é outro ponto elogiável. Que brilhantismo para imaginar soluções realistas diante de impasses impossíveis de se ultrapassar! Ver duas mulheres tão inteligentes batalhando com todos os mínimos detalhes para encontrar um sociopata é inebriante e viciante. Um jogo de gato e rato onde só vemos o gato e uma trilha quase invisível de pistas deixada pelo rato. Meu antigo sonho infantil de ser policial deu um “oi” aqui.
Além de tudo isso, a minissérie trata seu tema principal com delicadeza e profundidade. Demonstrar que cada pessoa reage à mesma situação de formas diferentes é iluminador para só quem pode imaginar passar por aquilo. E ela ainda consegue revoltar o espectador com a falta de ética e o despreparo que boa parcela da polícia possui ao tratar de vítimas de estupro. Simples erros, como negligência e falta de tato, podem destruir novamente a vida já destruída de alguém. E é por isso que tantos casos não são relatados no Brasil e no mundo: mulheres acabam sendo vítimas duas vezes – uma no estupro e outra na sociedade. E a minissérie demonstra isso com um triste esplendor.
Por fim, é uma produção extremamente hodierna e necessária. Principalmente diante do movimento #MeToo. A simplicidade dessa minissérie e todo o calor emanado das atuações das 3 atrizes dentro de uma investigação poderosa e, infelizmente, real fazem dessa pequena história algo único dentro do catálogo da Netflix que poderia ser apenas mais uma do gênero. Inacreditável é um drama raro. He said “you need to be more protective of yourself”.
P.S.: 98% no Rotten e 8,4 no IMDb. Isso sozinho já diz muita coisa (rs).
Nota: 5/5
Trailer legendado:
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Autor do Post:
Matã Marcílio
https://instagram.com/mat_marcilio/
Um pré-fisioterapeuta nordestino que, perdido no mar das incertezas, fez das palavras seu refúgio. Um pouquinho mais de duas décadas de leitura e sedentarismo causado pelo prazer de deitar em frente a um espelho negro e observar toda a glória do homo sapiens ao escapar da realidade terrivelmente entediante. “Jojo Betzler. Hoje, só faça o que puder.”